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Miséria do teorismo

  • Writer: Tomás Rosa Bueno
    Tomás Rosa Bueno
  • May 16, 2019
  • 4 min read

O teorismo: um exemplo


Os militantes da OT(1) não levam em conta a evolução do pensamento de Voyer, nem do de Debord. É um procedimento normal, para quem não sabe o que é o pensamento nem para que ele serve, tomar as coisas em bloco, sem ver suas contradições internas. Para os militantes teleôs, o pensamento de Voyer, bem como o de Debord, é uno. Eles confundem o resultado final e degradado desses pensamentos com o todo, e depois pretendem tê-los superado, claro que em bloco, pelo simples fato de terem vindo depois. No mesmo movimento, em uma espécie de malabarismo mental comum a todos aqueles que não sabem o que é a dialética nem para que ela serve, vêem o pensamento humano como uma longa cadeia ininterrupta, e sempre em ascensão, de que eles seriam o desfecho e o topo.

A receita para isso é simples: antes de mais nada, empapados de teorismo pós-situ, esses neo-estudantes lêem tudo o que conseguem encontrar de Debord e de Voyer, com um pouco de Hegel e Spinoza e Marx e Aristóteles para dar-se o que julgam ser substância (mas não muito: lineares como são - tudo tem um fim, sim! - vêem em Debord e Voyer o desfecho do pensamento humano inteiro); tendo lido tudo, fazem disso uma salada para montar o seu nhenhenhém chegadista, que depois apresentam àquele que vêem como o representante da herança de se querem apoderar, como quem diz, "Veja o que fizemos, senhor professor, passe-nos o bastão". Que Voyer não tenha querido largar o bastão ou que tenha tido ainda, apesar de sua evidente deterioração, um mínimo de lucidez para enxergar claro na mistificação pseudoteórica dos teleôs, ou até que se tenha sentido incapaz de lhes responder, pouco importa, assim como não é importante saber se ele os falsificou ou se a versão de Weltfaust é a verdadeira: aquele a quem eles falavam era o Voyer do prepúcio de Levy, e o que ele fazia não tinha mais importância alguma. Qualquer um com um mínimo de articulação teria obtido o mesmo resultado. Mas eles eram incapazes de ver isso, do mesmo modo que o Debord do Prefácio à quarta edição não era mais capaz de compreender a evolução do espetáculo nem o que estava acontecendo na Itália e via conspirações por toda a parte, e o Voyer do "affaire Lebovici" estava já incapacitado de ver a degradação de Debord.


Todas essas aberrações resultam de um mesmo movimento: o da derrota da vaga revolucionária que deu origem à Internacional Situacionista e que chegou ao fim por volta de 1974-75 na Itália e em Portugal. O mesmo movimento espetacular que exagera o papel da I.S. em geral e de Debord em particular, pondo o carro à frente dos bois para apresentar os situacionistas e sua teoria como causa dessa vaga, tende a fazer esquecer - e não sem motivos - que a teoria é o pensamento da história, e que só pode ser feita no interior dos movimentos históricos. Ele mostra os situacionistas como um grupo de teóricos sem dizer de que era a teoria que faziam; ao fazer isso, ele oculta como a teoria é feita, e para que serve. Fazendo uma separação artificial entre uma suposta "fase artística" e uma "fase política" igualmente fictícia da evolução da I.S., esse movimento espetacular do pensamento iludido oculta ao mesmo tempo o fato fundamental de que os situacionistas não foram mais que a expressão - certo que a mais lúcida e mais radical - de um movimento real da parte da sociedade espetacular em que a dissolução dos valores dominantes estava mais avançada(2) e que esse fato fundamental era também a sua limitação fundamental. Assim como nos anos trinta as questões de organização acabaram revelando-se como questões políticas para Ciliga e seus companheiros na Sibéria, hoje ficaremos sabendo que as questões de modo de vida são essenciais para o pensamento(3).


O fim estava contido no começo. O movimento radical de pensamento que teve suas origens na teoria da dissolução da linguagem da arte e da moral ultrapassada dos restos da burguesia, como pensamento parcial e ainda parcelar, não podia ver além dessas origens e não foi capaz de ver a sua derrota no pensamento, nem compreender a que ponto essa derrota era a sua vitória no espetáculo. É dessa vitória que se alimentam hoje todos aqueles que, de Debord a Voyer e à OT, acreditam ser possível fazer teoria em observatórios. E é também essa vitória que faz com que seja aparentemente impossível fazer a crítica dos militantes da OT: não se discute com ideólogos, mostra-se o que eles são para deixá-los abandonados à sua miséria; todo esforço no sentido do debate condena imediatamente o que o faz a combater no terreno da ideologia, onde não há solução possível.(4)


O teorismo tem hoje, para a teoria, o mesmo papel que tinha o artismo(5) para a arte nos anos cinquenta: é uma verdadeira necrofagia do pensamento. Um quarto de século após a nossa última derrota, os nossos inimigos mais próximos continuam sendo os portadores da falsa crítica, e não podemos ficar aquém do que já foi feito no passado. O pensamento da história deve retomar o seu curso, e os nossos atos devem reencontrar a sua crítica.


Wiesloch, 13 de abril de 2000

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[Notas]

(1) Cumpre precisar que só vou falar aqui desses Andy Warhol da "teoria" ao lado de Debord e Voyer como caso extremo de um mesmo movimento geral de degradação: não se deve de maneira alguma pensar que eu poria esse pessoal, que nem uma I.C.O. é, no mesmo nível que Debord ou Voyer. O dito de Marx sobre a tragédia e a farsa continua válido.

(2) Que já então esses próprios valores fossem meras ficções frente ao império global do valor mercantil não tem (muita) importância para esta análise.

(3) Obrigado, R.P.! Obrigado, G.S.!

(4) Todo ideólogo é surdo por definição: os avisos ancestrais sobre os perigos da masturbação tinham fundamento, ora vejam!

(5) Cumpre precisar também que, tal como no caso dos "artistas", a má fé é a marca predominante dos ideologozinhos da OT, o que não pode ser dito de Voyer e de Debord.


 
 
 

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