Notas etiológicas sobre a ebulição das ruas (2013)
- Tomás Rosa Bueno
- May 16, 2019
- 9 min read
28/05/2007 13:49
Comentários enviados a um jornalista que não quer ver
As formas assumidas pelo "movimento estudantil do Século XXI" na ocupação da reitoria da USP estão em linha com movimentos similares em todo o mundo, cujas raízes estão em experiências históricas de democracia direta como a Comuna de Paris, os sovietes russos (os verdadeiros, não o arremedo deles no capitalismo de Estado), as comunas camponesas da Espanha republicana e muitas outras; e, neste novo século, cada vez mais presentes em todo o mundo.
Assim como está mais presente e atuante, também, a censura a qualquer menção a movimentos desse tipo. Alguém sabe, por exemplo, do papel que os "shoras", conselhos de trabalhadores, tiveram na derrubada do xá do Irã, no longínquo ano de 1978? Ninguém jamais se perguntou o porquê do açodamento francês em enviar o aiatolá Khomeiny ao Irã? Alguém soube que em 2001, e por mais de dois anos, na região da Cabília na Argélia, assembléias de aldeia e de bairro conhecidas como "aarouch" ("aarch" no singular, procurem no Google se não acreditarem em mim) expulsaram de suas cidades e aldeias a polícia, o exército e todos os partidos políticos, e dominaram completamente a vida social por meio de assembléias democráticas onde não havia direção formal e não se permitia a ninguém falar em nome do movimento se não fosse lendo um documento discutido e aprovado por todos? Ou, aqui mesmo ao lado, na Argentina, onde o movimento espontâneo do "Que se vayan todos" derrubou o de la Rúa e depois, organizado em assembléias de bairro cujos princípios de funcionamento democrático eram igualmente radicais e que se reuniam nas esquinas de Buenos Aires e em todas as cidades grandes e médias do país, derrubou mais dois presidentes, impediu um terceiro de governar por mais de dois anos e finalmente ditou grande parte da agenda de um quarto, o Kirchner? Ou alguém aqui acha que o Kirchner, do centro peronista, tomou todas as medidas que tomou contra o FMI da cabeça dele? Alguém ouviu dizer que em Oaxaca, no México, uma "Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca" nos mesmos moldes democráticos das anteriores expulsou o governador, a polícia e todos os deputados do estado e foi o governo efetivo por seis meses, até a entrada do exército na cidade, há apenas três ou quatro meses? E que o movimento, apesar da presença das forças armadas na capital, continua dominando parte da cidade e praticamente todas as demais cidades do estado?
E nem uma única linha sobre estes grandes movimentos, dois deles praticamente aqui ao lado, apareceram na grande (ou na pequena) imprensa brasileira, nem de qualquer parte do mundo. Graças a essa censura, nem um desses movimentos espantosamente semelhantes sabia da existência dos outros (e é provável que haja e tenha havido outros, também ocultos). E, no entanto, eles continuam aparecendo, sempre com as mesmas características democráticas radicais; e com cada vez maior freqüência. Já estava na hora de aparecerem também no Brasil. Se este de agora, de que a imprensa fala inadvertidamente por se tratar de um embaraço para o Serra e de uma aparente novidade (mas já começa a caluniar) vai ter "filhotes", se vai ou não servir de inspiração para outros aqui mesmo, ainda é cedo para dizer. Mas ele com certeza faz parte de uma tendência mundial, e não vai simplesmente desaparecer, por mais que se tente ocultá-lo, caluniá-lo e, em última instância, esconjurá-lo.
II
Em resumo, e aproveitando o gancho do comentário do Virgílio, o que está em curso na USP é apenas *mais uma* manifestação do movimento que vai além do óbvio e desastroso fracasso do modelo liderança/liderados de atuação política. É uma resposta a esse fracasso. Não se trata, portanto, de "falta de parâmetros", mas de outros parâmetros, distantes demais da percepção dos que se aferram ao velho modelo que, mais que estrebuchando, já está fedendo.
Comparar os ocupantes da reitoria da USP aos maoístas reciclados do MST, com o modelo "longa marcha" de uma liderança tanto mais irresponsável quanto mais informal for, que apenas disfarça e dilui a velha dicotomia entre pensadores e executantes, é não entender que a principal característica deste novo movimento é justamente rejeitar o conceito de liderança, substituindo-o pelo da responsabilidade coletiva e partilhada, pelo anonimato e o combate ao estrelismo. É o modelo "fuenteovejuna" de movimento social.
Os que insistem em vinculá-lo às formas antigas de perpetuação do poder poderão talvez confundir as coisas, e antes de mais nada a si mesmos, por algum tempo. Mas o movimento veio para ficar. Já há dois anos, foi prefigurado no exemplar movimento dos secundaristas de Salvador contra o aumento das tarifas dos ônibus, coordenado via celulares e sem qualquer liderança visível (nem invisível). Vamos vê-lo em outras ocasiões, cada vez mais articulado, cada vez mais ousado.
16/06/2013 - 20:34
Segunda explicação a um jornalista que não sabe ler
Caro Nassif,
em 2007, por ocasião da ocupação da reitoria da USP, você já aventou estas mesmas opiniões sobre a "falta de bandeiras" do movimento. Na ocasião, nos "Comentários enviados a um jornalista que não quer ver", tentei explicar onde estava o seu erro. Porém, assim como você é um jornalista que parece que não sabe (ou não quer) ler, é bem capaz que eu seja um leitor que não sabe escrever, e talvez, na ânsia de explicar tudo, eu tenha acabado não dizendo nada.
Agora, quem sabe, com a confirmação da minha previsão de que "o movimento veio para ficar" e que "[v]amos vê-lo em outras ocasiões, cada vez mais articulado, cada vez mais ousado", fique mais fácil entender o que eu disse então, mas mesmo assim vou tentar ser claro: o movimento pelo passe livre, como todos os movimentos nos mesmos moldes que vêm surgindo com cada vez maior frequência em todo o mundo, é a sua própria bandeira. O que interessa, em última instância, não é o quê, é o como. Não é a bandeira, é como erguê-la. Não é ter uma meta, é procurar novas maneiras de alcançar metas, novas formas de fazer as coisas. O que essas meninas e esses meninos finalmente entenderam é que repetir os mesmos procedimentos na esperança de obter resultados diferentes é a definição da psicose, que as questões de organização são e sempre foram as principais questões políticas, que o modo como se faz uma coisa define a meta que é possível alcançar.
Entenderam que os meios são os fins.
Ter uma "bandeira", uma estrutura, uma hierarquia, líderes, porta-vozes, representantes é exatamente a derrota do movimento, mesmo que os objetivos imediatos sejam alcançados. O que se reprova neste e em outros movimentos do mesmo tipo é precisamente o que os faz fortes, e o que mais ameaça o velho mundo: é a ausência de "líderes" cooptáveis, a inexistência de "interlocutores confiáveis", a "falta de controle" sobre o movimento. É a estrutura que impossibilita que alguém fale em nome de todos, e assuma em nome de todos compromissos certamente vergonhosos, que permite que cada um dos seus participantes tenha a sua própria posição sobre cada assunto mas somente o consenso geral seja a voz do coletivo. Que impede que os abutres do militantismo stalinista que rondam o movimento possam encampá-lo. É simples e econômico: a parte que fala em nome do todo identifica-se automaticamente como oportunista. É a democracia de volta às origens, a democracia que torna todos igualmente responsáveis pelo que é feito, é o diálogo direto da sociedade consigo mesma, sem intermediários. Esta é uma bandeira que vale a pena erguer: a da vitória da vontade e da transparência contra a escuridão da submissão.
Há alguns anos, um filho meu comentou, a respeito do meu passado e do presente dele em movimentos como o do passe livre: "Vocês foram derrotados. Nós vamos vencer". Esses "descontrolados" "sem bandeira" são a sombra do futuro, e já estão vencendo. A partir deles, todo o resto é obsoleto, é o caminho da derrota repetida.
07/07/2013 - 01:57
Dez dias que abalaram o Brasil
Algumas conclusões provisoriamente definitivas sobre a onda de manifestações de massa que varreu o Brasil
1. A oposição de direita ao governo de coalizão liderado pelo PT, mesmo aliada à grande imprensa, demonstrou não ter o mais mínimo poder de mobilização. As manifestações convocadas sob as bandeiras típicas do neo-udenismo, "contra a corrupção" e contra "os políticos", não levaram às ruas mais que os poucos milhares de infelizes de nariz de palhaço de sempre. A última tentativa, a greve patronal de caminhoneiros, calcada no modelo da que pôs em marcha a máquina do golpe de 11 de setembro de 1973 no Chile, não levou em conta uma diferença fundamental entre o Chile de então e o Brasil de quarenta anos depois: no Chile, a imensa maioria dos caminhoneiros era composta por pequenos proprietários, que dirigiam os seus próprios veículos ou tinham no máximo dois ou três empregados; no Brasil, hoje, a imensa maioria dos que dirigem caminhões são empregados de grandes empresas de transportes, e nem uns nem outras estão interessados em bagunçar o coreto -- o suspeitíssimo Movimento Unido Brasil Caminhoneiro não levou mais de poucas dezenas de despistados ao bloqueio de pistas em todo o país, movimento facilmente desbaratado por uma mera ordem judicial antes de causar maiores prejuízos.
2. O governo liderado pelo PT finalmente gerou uma oposição de massas à sua esquerda. O que estranha não é o surgimento "repentino" (só pra quem acreditava no conto de fadas da "governabilidade" a todo custo e não observava a fermentação) das manifestações de massa, é que elas tenham demorado tanto. Essa oposição, organizada sobre bases democráticas radicais que favorecem a sua expansão horizontal e a rápida ocupação de espaços sociais, não é "contra o PT", como sonham os tolos da direita e temem os tolos da esquerda; ao contrário, o que as multidões que se manifestaram por todo o país querem na verdade é "mais PT": é a revolta pela realização das promessas e esperanças que a vitória do Lula gerou em 2002, e que o bonapartismo e o fisiologismo do "PT real" frustraram no passado, frustram no presente e só poderão frustrar no futuro. A mobilização, conduzida por centenas, milhares de pequenos grupos mais ou menos permanentes espalhados por todo o país, que não precisam de um comando centralizado para falarem com uma só voz porque são a expressão de uma revolta comum que se vem incubando há anos, não vai refluir nem recuar. Vai, sim, na experiência dos combates diários e do diálogo direto, afinar e radicalizar as suas reivindicações e ficar nas ruas por muito tempo. Já agora, após poucas semanas de mobilização, já forçaram a burocracia sindical a tentar encampar as suas reivindicações iniciais para melhor diluí-las e recuperar a iniciativa e o poder de mobilização e barganha.
3. O "Dia Nacional de Mobilização", na quinta-feira 11 de julho, será um teste decisivo da maturidade dos movimentos sociais de base que deram origem a toda a movimentação. Se souberem manter a própria autonomia e não sair a reboque das manobras burocrático-partidárias, poderão manter o calor da ebulição social que vai realizar as esperanças nascidas em 2002. Se não, verão as suas bandeiras serem transformadas em moeda de troca nos parlamentos e gabinetes -- o que apenas adiará por mais um tempo a explosão.
4. Interessa a quase todos -- da Globo e da Folha e da tucanalha ao grande setor fisiológico do PT -- apresentar a onda de manifestações como uma "novidade" possibilitada pelos meios de isolamento e espionagem conhecidos como "redes sociais", e diluir as suas reivindicações concretas e palpáveis em uma vaga sopa indistinta de aspirações de "mudança" na qual cabe de tudo, para poderem responder a essas "aspirações" com uma febre legislativa cujo único propósito é mudar mil detalhes para que a essência continue como está. Essa falsificação esquece-se do longo e paciente trabalho de sapa da velha toupeira que foi o que, mais uma vez, saiu à luz para impedir que as coisas continuem como antes, prenhe das lições de séculos de lutas e cada vez mais sábia.
28/01/2014 - 13:04 - Atualizado em 28/01/2014 - 16:41
A calúnia como método, a violência como último recurso
A militância do PT na internete fala exatamente, no essencial, como a propaganda stalinista nos anos trinta do século passado: não havia socialistas, havia social-fascistas; não havia anarquistas, havia -- quem adivinhar ganha um retrato do Camarada Quércia -- "quinta coluna fascista"; e toda a oposição de esquerda ao stalinismo estava "a serviço de potências estrangeiras".
Não há nada mais parecido a um comissário político do que um petista no poder. É o legado da destruição da democracia interna do partido, levada a cabo consciente e deliberadamente pelas hostes do Grande Líder Zé Dirceu, hoje em dia encarnadas na "Militância em Ambiente Virtual", comandada pelo Grande Líder Ruy Falcão. Essa corja é inimiga de tudo o que o PT algum dia representou -- e o próprio PT é hoje um obstáculo às aspirações e esperanças dos seus milhões de eleitores.
Quando esses milhões começarem a voltar às ruas para exigir -- como fizeram nas Jornadas de Junho -- o cumprimento das promessas e a realização das esperanças que a vitória do PT representou em 2002, terão de enfrentar antes de mais nada o próprio PT aliado à grande imprensa para inundar a praça de calúnias, e os que sobreviverem ao massacre terão diante de si todo o peso do aparato repressivo do Estado, apressuradamente reforçado em todas as instâncias nos meses que sucederam o grande pânico de junho de 2013. Mas terão ao seu lado a inteligência dos novos instrumentos de ação democrática que souberam criar nesta última década, de cuja extensão e aprofundamento dependerá o desenlace do enfrentamento.

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